sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Espetáculo.

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O “ser” já não faz muito diferença diante do “ter”, do poder. Tudo se compra ou negocia. Diante de todo o caos gerado pelo capital e pela necessidade do Homem de dominar, pouco restou aqueles que são diariamente entretidos com o pão e o circo de sempre. Com a modernização veio a disputa pelo mais caro, pelo melhor, resultando em formas mais eficazes de aniquilação de uma formação coerente do ser humano.
No texto, Modernidade e ambivalência de Zygmunt Bauman, a história da modernidade é discutida como intolerante. A ordem e o caos, segundo Bauman, são gêmeos modernos que nasceram devido a ruptura e ao colapso de um novo mundo que trouxe a máquina, a intensificação das descobertas científicas, a fragmentação das ciências, os modos de produção que foram alterados e o assalariado passando a vender sua mão de obra aos donos de  fábricas, não tendo tempo ou saúde mental e física para pensar, estudar, se aperfeiçoar.
 É o chamado lado sombrio da modernidade: condições degradantes, labor maçante e repetitivo, aperfeiçoamento das indústrias de guerra e confrontos nucleares, destruidor do meio ambiente e de uma condição decente de vida para o homem. Bauman diz que: “A modernidade orgulha-se da fragmentação do mundo como sua maior realização[...] Quanto mais segura à fragmentação, mais incoerente e menos controlável o caos resultante.”
A modernidade é portanto, uma experiência marcada pela ruptura para com as tradições e pela perda da crença no progresso e na instituição, que explora e marginaliza o indivíviduo assalariado, tornando dependente de um sistema que favorece os que detêm o poder.
Todo o caos gerado pela própria busca da ordem na modernidade foi gerando mais e mais problemas, mais miséria, menos valores, mais favelas, menos consciência. E a pós-modernidade, surgiu como característica de uma sociedade pós-industrial. Segundo Fredric Jameson, em Pós-modernidade e Sociedade de Consumo, pós modernidade é: “um conceito de periodização cuja principal função é correlacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica.” É a chamada sociedade de consumo, sociedade pós-industrial ou sociedade do espetáculo.
Jameson discute o pós-modernismo como uma “sociedade-efeito” da sociedade de consumo, como uma lógica do capitalismo tardio e ele escolheu duas marcas da pós-modernidade: o pastiche e a esquizofrenia. O pastiche seria uma imitação, a utilização de uma máscara, uma forma de reler o passado. No dicionário de termos literários:
“O pastiche insere-se assim no espírito modernista da colagem e reaproveitamento de moldes e estilemas, reabilitando-se e libertando-se do estigma de processo menorizado. O revivalismo do pastiche na época pós moderna prende-se com a Literatura da Exaustão e o fim da originalidade e do estilo autoral, a procura de significado e identidade pela apropriação deliberada, e com a percepção esquizofrénica do mundo e da cultura como um manancial de fragmentos permanentemente reutilizáveis.” (Carlos Ceia)
É como se fosse uma forma de resgatar momentos, mas sem o senso de humor da paródia, é uma adaptação, uma apropriação de emoções, uma forma de guiar a leitura, borrando as referências históricas e de tempo. Enquanto isso, a esquizofrenia, baseada nos estudos de Lacan, é uma perda das noções de tempo e espaço ( dificudades com a temporalidade: memória, presente e passado). É a perda do sentido do significante, que ao ser ultrapassado enquanto palavra, torna-se imagem.
Essas marcas do pós-moderno, estão todo tempo circulando nessa sociedade desencadeada pela Revolução Industrial. No cinema, na arquitetura, na música, na pintura, na literatura. O sujeito individual morreu, se é que algum dia existiu, como escreve Jameson, tudo já foi dito, a única possibilidade de inovar é na forma como se diz o que se quer dizer. No filme “A Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord, o autor trabalha todo tempo com o corte e a repetição, como discute Agambem a propósito do cinema de Guy Debord em uma conferência em Gênova (novembro de 1995), o que quer dizer que o cinema em Debord, é feito através de imagens do próprio cinema, é aí está uma forma inovadora de dizer o que se quer dizer.
A força das imagens escolhidas, o movimento que Guy Debord dá à linguagem, enquanto discorre sobre o espetáculo, sobre o real que se converte em imagens, sobre as relações sociais mediadas pela imagem e tudo o que é acarretado por essa pós-modernidade instável e consumida pelo consumismo, conduz o espectador a refletir sobre o que sobrou depois da indústria, do capital e da exploração de tudo que pode gerar lucros.
Debord dicute em seu filme, a sociedade como uma sociedade do acúmulo dos espetáculos, em que o mesmo é ao mesmo tempo parte da sociedade e a própria sociedade em si, unificada pela falsa ideia de existência de uma realidade, que no entanto não passa de representação. O espetáculo, segundo Debord, “não é um conjunto de  imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.” É a forma encontrada para converter o mundo real em imagens, os sonhos em desejos de consumo, a busca incansável por algo que não se pode atingir, pois está sempre além do alcance.
E o sistema utiliza esse poder que possui sobre os indivíduos, impedindo sua formação enquanto ser autônomo e independente, incapaz de decidir, escolher ou julgar as condições a que está condicionado. O homem é o instrumento do trabalho e do consumo, é um objeto manipulado por meio de propagandas, pelo cinema, pela música, tornando toda relação existente em um bom ou mau negócio. Adorno em “Teoria da Cultura de Massa”, a respeito dessa condição exacerbante de consumo diz que, a indústria cultural molda o todo e as partes, atrofiando a imaginação e a espontaneidade, impondo uma realidade que desperta desejos, determinando o consumo e as “necessidades” dos consumidores.
Debord coloca essa sociedade do espetáculo como uma aceitação passiva de que se deseja algo e que não se pode viver sem esse algo, colocando a aparência das coisas acima de qualquer valor. É a negação da vida, que coloca o espetáculo como indiscutível e inacessível, nas palavras de Debord: “Sua mensagem única é, o que aparece é bom, e o que é bom aparece. A atitude que o espetáculo exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.”
Ou seja, as pessoas trabalham incansavelmente em um sistema que é indiscutível, imposto, não há outra saída a não ser aceitar que se vive para consumir e que nunca se tem o suficiente para consumir tudo que é veiculado na mídia. O que vende é uma posição social que aparente se ter mais do que se tem, o que vende é a imagem em si. Afinal, se está na mídia, todos querem ter, é a massificação dos gostos, das vontades e dos estilos. Se é moda ser estranho, tudo bem ser “estranho”, mas se a mídia não veicula nenhuma imagem relacionada a esse ou a outro estilo, então não é muito bem aceito pela sociedade. E, nesse momento, se deve escolher, adaptar-se e ser engolido pelo sistema ou tentar uma fuga que acaba sempre caindo em algum buraco negro armadilhado pelas relações de poder, o que conduz a uma conclusão de ser bastante complexo realizar essa fuga.
Guy Debord fala ainda sobre o poder do espetáculo e sobre sua aliança com o Estado Moderno: “A cisão generalizada do espetáculo é inseparável do Estado Moderno [...] A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a formação das classes, constitui a primeira contemplação sagrada, a ordem mítica em que todo o poder se desenvolve desde a origem.” O espetáculo moderno, diz o que a sociedade pode fazer, mas não necessariamente haverá tempo ou capital para se fazer, portanto é preciso descobrir alguma forma de se ter dinheiro. O sistema econômico que se tem a disposição, coloca o indivíduo na maior parte do seu tempo produzindo e no tempo que lhe sobra, consumindo. O espetáculo, segundo Debord, não passa de uma fábrica de alienação, construindo indivíduos separados de suas vidas, trasformados em meras mercadorias. “O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem.”
E a imagem consolida o espetáculo, pois é através da necessidade do homem de possuir que, a mercadoria domina tudo o que rodeia o ser humano, sendo capaz de tornar o indivíduo falsamante autossuficiente, sem precisar manter relações com os outros que o cercam, o si mesmo e seus objetos de consumo são suficientes. O mundo é transformado em um mundo da economia, em que o espetáculo “canta” as mercadorias e as paixões do homem, não deixando margem para a escolha, a mercadoria reina absoluta e o homem mais uma vez torna-se escravo.
O espetáculo faz do homem uma marionete e o chama de “consumidor”,  constrói desejos e necessidades e coloca o consumo total como sua “terra prometida”. É o humanismo da mercadoria que entra em jogo, tomando “ a cargo os lazeres e humanidade do trabalhador, muito simplesmente porque a economia pode e deve dominar, agora, também estas esferas, enquanto economia política.” Tudo se faz pensando no capital, e este só tem por finalidade a negação da existência humana enquanto essência, colocando a mercadoria como indispensável.
A construção de um cenário apropriado para confundir o indivíduo enquanto pessoa, para torná-lo escravo da mercadoria e do comprar, do possuir, do ter o guiando para um lugar da insatisfação constante. A perda dos valores, o individualismo e a alienação conduzem o homem a uma falsa consciência de vida, de tempo, de memória. O espetáculo tem esse poder de criar um mundo real convertido apenas em imagens e ícones de “grande” valor capital.
De volta ao texto de Fredic Jameson, a respeito das duas fortes marcas do pós-moderno, em que uma delas seria o pastiche e a outra a esquizofrenia, é possível estabelecer relações sobre essas questões de perda de valores, de conversão do real em imagens, de falta de noção de tempo, memória e lugar de que fala Debord com os dois traços marcantes da pós-modernidade de que fala Jameson.
O indivíduo nesse percurso foi sendo conduzido a uma fragmentação e à perda da consciência, que são características presentes em um tempo, denominado por muitos teóricos como pós-modernidade. Sobre as transformações pelas quais passaram e passam os sistemas, modos de produção, tecnologia, Jameson diz que:
Acredito que a emergência da pós-modernidade está estreitamente relacionada à emergência desta nova fase do capitalismo avançado, multinacional e de consumo. Acredito também que seus traços formais expressam de muitas maneiras a lógica mais profunda do próprio sistema social. No entanto, vou limitar-me a indicar esta relação a propósito de um só de seus temas capitais: o desaparecimento do sentido da História, o modo pelo qual o sistema social contemporâneo como um todo demonstra que começou, pouco a pouco, a perder a sua capacidade de preservar o próprio passado e começou a viver em um presente perpétuo, em uma perpétua mudança que apaga aquelas tradições que as formações sociais anteriores, de uma maneira ou de outra, tiveram de preservar. (JAMESON, p.26)
Toda a questão abordada tanto nos textos de Jameson acerca da pós-modernidade, quanto dos efeitos da sociedade do espetáculo discutida por Guy Debord parecem estar inter-relacionadas, uma vez que na Sociedade do Espetáculo são trazidas as problematizações em relação à crise da representação, às “mentiras e manipulações” da mídia para conduzir o indivíduo a uma negação visível da vida, desvinculado de uma memória e de uma história e o pós-modernismo, segundo Jameson, vem para dar conta de novos traços, novos padrões que emergiram juntamente com a sociedade do espetáculo ou a também chamada sociedade pós-industrial.
Há muito por se analisar sobre todas essas questões. Foram feitos alguns recortes, para enfatizar algumas posições a respeito dos efeitos da sociedade pós-industrial e o surgimento do pós-modernismo. No entanto, como próprio Jameson diz, essas são questões ainda em aberto.
Nosso tempo sem dúvida... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não passa de ilusão, pois a verdade está no profano. Ou seja, à medida que decresce a verdade a ilusão aumenta, e o sagrado cresce a seus olhos de forma que o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.
Feuerbach-Prefácio à segunda edição de A Essência do Cristianismo.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Sem mais

Outro dia, sem mais, começaram a me vir umas ideias... ideias, talvez, toscas ou prosaicas, mas que me levaram a outro lugar. O lugar não importa tanto, antes importa a reflexão, a tentativa de ver em meio a tantas sombras e limitações oferecidas em qualquer esquina, atrofiantes, e num estado maior de "pureza". Uma pureza bem trabalhada e facilitada ao máximo.
Então, pensava em como é difícil pensar, em como é difícil se dar conta do limite, ele está lá, você está imerso e não consegue ver o quanto. O tempo, esse escapa. O amanhã é sempre melhor. Hoje não tenho ideias. As que tenho, não servem. Jogo os jogos já jogados e mesmo sabendo os resultados, me sinto feliz, ou, seguro. Arriscar? Quanto? Por quê e pra quê? E pra que pensar nisso? Já pensaram, já disseram, já poetizaram e já tornaram "história". Aliás, dito, parece que tudo está. A questão agora é intertextualidade e arranjos novos. Os motivos, talvez mudem. No entanto, isso depende do seu horizonte apreciativo, ou ainda, das suas experiências e leituras de mundo. A imersão. Dessa tentamos fugir, mas não muito eficazmente. Uns pulos aqui, outros ali e enxergamos momentaneamente por sobre os muros que nos cercam em nós mesmos. Parece simples, mas é complexo "escrever" sobre o mesmo e o "outro" de forma diferente. Tudo está interligado e as coisas não são uma ou outra... Estão todas ali, caóticas e indo de encontro aos seres que acostumados precisam separar, organizar e classificar, e por isso, sem nem se questionar, excluem o outro de seu "eu", imaginando seguramente que as coisas são de uma forma ou de outra, quando, na verdade, elas são isso e aquilo e mais até. Não espero finalizar uma reflexão. Não espero dizer algo realmente não inundado por meus horizontes apreciativos.











Espero apenas dizer e, talvez, não estar falando sozinha, outra vez.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Do que estamos falando? E pra quê?

Ao pensarmos em pós-modernismo, estamos nos referindo a um conjunto de tendências, paradigmas e teorias que compõem todo um cenário marcado pela ruptura e pelo redobramento, que assume a forma exterior de acontecimento. Quer dizer que, o pós-moderno coloca o sujeito exposto à dúvida, às interpretações e contestações da verdade única que nos é imposta desde o momento em que nascemos.
Essa verdade é colocada por Jacques Derrida como o (des)centramento da estrutura; segundo Derrida, o centro tem a função de organizar e orientar essa estrutura. No entanto, essa organização reduz e fecha as suas possibilidades enquanto pensamento de uma sociedade dita civilizada. Por outro lado, uma estrutura sem centro representa o impensável, as diversas versões de verdade, a multiplicidade de vozes em uma narrativa histórico e literária, sendo acima de tudo a perda das garantias, a perda da certeza imóvel e tranquilizadora de um centro fixo em um ponto de origem considerado a verdade absoluta e intocável.
A partir do momento em que se rompe  com os princípios de centralidade da estrutura, tem início um processo de repensar os sentidos, os lugares, a lei que comanda a ordenação do centro. E na ausência desse, segundo Derrida, tudo se torna discurso. Afinal, se não há centro como algo natural, o centro passa a ser função ao invés de lugar de origem ou princípio. Nas palavras de Derrida, “a ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação.”
Em outras palavras, as narrativas passam a ser repensadas, os conceitos passam a ser revistos, a História passa a ser questionada e surgem dúvidas acerca da verdade, do discurso de unidade da nação.O que vem após esse momento de ruptura, que é fruto de uma época bastante violentada e vilentadora, são as multiplicidades de discursos, as outras vozes que contam a história sob outros pontos de vista.
Assunto "batido", eu sei. Mas pensar, às vezes, ajuda.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Um dia qualquer

Eu diria que hoje foi um dia "daqueles", não fosse a presença ilustre e "crônica" do meu querido Murphy! Porque quando ele não aparece, o dia não está completo. Diria mais, sem Murphy, nada feito. Não é de agora essa nossa intensa relação, só não lembro ao certo quando começou; não sei se partiu de mim a iniciativa, ou se a paixão afetou-o antes. Não sei dizer, só sei que desde sempre esse sujeitinho não me deixa em paz. Na escola, era só ser eu a jogar a bolinha de papel e lá estava o sr. Murphy me sacaneando; em casa minhas tentativas de ludibriação não funcionavam, nem febre eu costumava ter e, aí não tinha jeito, "anda pra escola, minha filha, é só uma dorzinha na garganta". Mas tudo bem, isso nem é tão grave assim e, acho que foi nesse momento que passei a notar uma leve perseguição e, assim decidi desenvolver uma estratégia, a de não falhar, não esquecer, não chegar atrasada, não entregar os trabalhos fora do prazo, não comer com roupa clara, deixar os aparelhos eletrônicos ligados em tempestades... Parecia que ia dar certo, mas ele teve saudades, não podia ser tão simples assim, um amor de tantos anos, uma relação tão sólida e duradoura. Oras, nos reaproximamos e dessa vez pra valer: Nada de estratégias, apenas não me importava mais, convivia e aceitava o seu poder sobre mim.Afinal, quanto mais eu penso(ava), mais Ele se fortalece(ia) e, isso é fato. Hoje, reflito se isso tem a ver com sorte, com perseguição, com karma, com suborno mal realizado; não sei, só sei que se eu me atrasar um segundo, não é como um atraso na vida de uma pessoa que não se relacione com Murphy, não mesmo, esse um segundo será sim usado contra mim; se eu não tiver lido o texto da aula, não se preocupe, o professor será iluminado pela ilustre presença do grande sr Murphy e a pergunta será dirigida a mim, não importa o fato de eu ter lido todos os anteriores, não há perdão ou compaixão. Falhou, tá falhado. Outros casos interessantes a que sou submetida, ou seriam testes... enfim: as poças de água e malditos motoristas enfurecidos; sol x guarda-chuva e chuva x esquecimento desse sagrado artefato dos dias chuvosos, é uma atração carnal, visceral. Decidi, diante de tudo isso, aprender  a conviver; programo-me da forma certa: se amanhã eu quiser sol, penso e me preparo pra chuva! Funciona que é uma maravilha. Pode parecer que não, mas no fundo, já nos acostumamos um ao outro e, lidamos bem com essa embativa e turbulenta relação. Eu finjo que entendo, ele finge que esquece.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Ainda aqui.

Nada como um distanciamento de si e das situações cotidianas. É bom sair, olhar e ver coisas diferentes, outros lugares, ou os mesmos com outros olhares. Uma viagem é bem interessante pra causar essa "sacolejada" na vida. Não que possamos viver em constante distanciamento, contudo, vale a experiência, vale a mochila nas costas e a vontade de desbravar e, vale ainda mais o “como se volta depois que se vai”. Acho que devia destreinar meus sentidos e deixá-los buscar novos sistemas referenciais, novas intensidades e outros limites pra mim e para o que eu gostaria de tornar meu (nem que, momentaneamente meu). O contato com o não-cotidiano faz bem, renova o sangue que circula nos pensamentos e o ar que passeia nos pulmões. Por vezes, a viagem não precisa se dar em uma configuração pré-estabelecida, é preciso reconsiderar, causar em si uma ressignificação de conceitos e olhares e buscar no mesmo, no comum, aquilo que nem sempre pode ser visto sem uma “atenção” diferenciada. Falo mesmo de situações corriqueiras, de músicas ouvidas, de poemas sentidos, de leituras feitas, de roupas vestidas, de cheiros deixados e de sutilezas que andam esquecidas. Afastar, rever e voltar a ver. Sem rodeios, nem excentricidades, falo de voltar a ver, ouvir e sentir de um modo particular, ver ao longe, depois do perto e ver o perto depois do longe. A cidade ainda está aqui, as pessoas ainda "circulam", e os sentidos, todos eles, ainda são nossos e dos outros.



Agora: um Leminski:

"já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma"

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

P

“O poema é feito de palavras necessárias e insubstituíveis.”
(Octávio Paz)



Estar em contato com a poesia é algo notável. Algo que se entranha na mente e se faz presente de forma que não se pode ignorar as experiências que habitam no espaço de um poema. Mas ser poeta não é algo que simplesmente se possa viver sem sair repleto de marcas. É um trabalho intenso e dominante, que guia muitas vezes o sujeito para a obscuridade de uma solidão sem saída.
A poesia tem a função de fundar culturas e de permanecê-las através do tempo, permitindo aos seus amantes, que releiam as tradições, preservando e aperfeiçoando a língua. No entando, a arte poética é, sobretudo a experiência na vida do leitor, que o permite tocar o poema através da exposição, do acidente "incalculado" que acontece nas múltiplas vias entre a poesia que toca e o leitor que é tocado.
E a poesia não pode ser aprisionada em conceitos, ela vai além do corpo, além das mãos, apagando os contornos e transbordando para além dos limites da linguagem e do sentido. Ela é a aproximação, a paixão única que vem e revira tudo na alma do leitor, tirando-lhe o fôlego e devolvendo-lhe o coração. Afinal, é através do coração que nasce o ritmo pulsante da poesia e, é por meio dele que o leitor ama a poesia e guarda-a junto de si, podendo assim sentir o mundo em tempos e intensidades diferentes, como diria T.S.Eliot.
A poesia tem influência direta na cultura de um povo. Uma vez, que é através dela que as sociedades se mantêm vivas e "sadias", sensibilizadas e estruturadas. Nas palavras de Ezra Pound, os poetas fundam culturas inteiras. Deixando sempre um pouco de si, como diria Drummond em seu “Resíduo”. Ao passo que cada poeta de que se fala construiu um universo poético bastante singular. Cada um, de uma forma sem igual fundou uma cultura, marcou um tempo, não esse tempo linear que se diz por aí, mas o tempo que sempre retorna, retoma e vai do fim ao começo, sem deixar designado um ponto de origem, um centro fixo, que não garante a liberdade e apenas reforça a falsa ideia de segurança e tranqüilidade.
Poetas, portadores de múltiplas vozes que ressoaram e ressoam pelos cantos, bordas e infinitos espaços/tempos.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Interesses, sim. Mas de forma coerente!


Em meio a tantos tumultos: eleição, falcatruas, pós-modernidades, projetos, pré-projetos, lançamentos e relançamentos de campanhas, planejamento sustentável, entre outros frenesis da atualidade, sinto uma necessidade absurda de me refugiar, entrar em stand by(e) e me pôr a pensar o que fazer com essa sociedade, com esse jogo de interesses que move nossos coleguinhas humanos, porque preciso dizer, em um sentido de desabafo que, do menor nível ao maior, os seres humaninhos são alimentados por seus interesses e, a espécie ou melhor, o teor do interesse que torna a situação mais ou menos 'esdrúxula', talvez a palavra não seja bem essa, mas é o que me vem agora no pensamento. Enfim, de um lugar não muito amplo, em redes sociais reduzidas avisto esse tipo de comportamento descaradamente: numa semana, beijos e abraços e "vote em minha chapa" e "blá blá blá" e, na outra (depois de vencida a eleição, mas com certeza não com o meu 'votinho') surge aquele olhar de nada, aquele mesmo distanciamento que sempre existiu, mas que foi abolido durante os cinco minutos insistentes do pedido de voto. Honestamente, isso não é coisa aceitável pra uma sociedade que se diz desenvolvida, intelectual e seja lá o que significar circular pelos corredores universitários. Protesto e discordo dessa postura "blasé" que camufla e confunde. Interesses, sim, mas de forma coerente.
Politizados, sei.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Clarice em Clarices


Clarice escreve de si e de todos com uma simplicidade que vai além das palavras, levando-nos a lugares tão íntimos e comuns; comuns, não apenas no sentido de corriqueiro ou cotidiano, mas antes, em um sentido de “em comum”. Em cartas, crônicas, romances ou contos, sob nome Clarice ou outros, ela sempre escreve de dentro e para fora. No conto “O ovo e a galinha”, Clarice Lispector compartilha uma das situações que atravessaram sua vida: “O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro.” Em outro trecho, “nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu.”
Clarice compõe minuciosamente, invade espaços que ora parecem triviais, mas que quando vistos de perto, tornam-se pedaços de almas e de lembranças guardadas em um lugar qualquer. E ela o faz com uma inteligência atenta e bem posta, com a intimidade de quem partilha de um mundo que é seu, delineando fragilidades, angústias, memórias, desejos, brilhos e opacidades de vidas que ela habita.
A sutileza de uma Clarice feminina que necessita de uma atenção audaciosa e atraente para construção dos sentidos: “os fios de água escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.” A delicadeza com que a autora do “intimismo” e da singularidade descreve a cena em que Mocinha de “O grande passeio” se refresca antes da ruptura definitiva de uma trajetória contada de maneira florida, sutil, mas sofrida. Já na passagem de “Restos do Carnaval”, Clarice narra o encanto da descoberta de um novo olhar que a menina-moça passa a compartilhar consigo mesma: “ E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era,sim, uma rosa.”Há, em Clarice, a graça de alguns elementos cotidianos e bem marcantes que sempre retornam em vários de seus “falares”; a rosa, aparece como uma espécie de divindade, retratada de forma delicada e graciosa, sem perder a intensidade: “Coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana de pétalas grossas e aveludadas com vários entretons de rosa-chá. No centro dela, a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.” E em uma passagem anterior, ela afirma: “Eu, em pequena, roubava rosas.” Ainda em outro momento Clarice destaca: “Fiquei boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher ainda não era.”
A leitura que se abre diante de nossos olhos ao encontrar as falas bem ditas e bem torneadas da autora que, não fixou identidades únicas, que buscou mais do que dizer, através de sentidos e segredos íntimos que saíram do particular para um mundo fragmentado e tantas vezes (re)contado, é uma leitura de viagem, de retorno e de encontros e desencontros: “Eu que sabia que também se morre em criança sem ninguém perceber.” Ou “Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios. Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou o quê? Um quase tudo.” Há nisso tudo clarices e ainda mais.

"Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando” Clarice Lispector

domingo, 29 de agosto de 2010

140 caracteres


Escrever é minha necessidade. 140 caracteres é pouco, mas parece ser o tempo que se tem disponível para compartilhar alguns momentos com um "outro" qualquer. Enunciados com mais do que algumas palavras já não fazem grande "sucesso". E isso é quase um fenômeno da "preguiça". Não adianta, não há tempo para isso ou aquilo. Tudo é rápido demais, então seja claro e objetivo. "Ok", você pensa: 140 e nada mais. No começo parece quase impossível, transmitir ideias, pensamentos, reflexões em tão curto espaço, mas depois você adapta-se e sai alguma coisa ou outra; não se diz necessariamente aquilo que gostaria, mas esse é o espaço: reinvente-o, diga de formas interessantes e talvez algum sentido será construído.
Das epopeias para o romance, dos romances para os contos, dos contos para as crônicas e das crônicas para alguma espécie de "silogismo". A impessoalidade, a velocidade. Não há como negar: "a crise da representação" não sabe mais para onde vamos.

140 caracteres: "um tempo sem tempo e sem lugar, um tempo sem memória, perdido e encontrado, uma colisão de pedaços de almas e de 'saberes'."
Por Suzi Mossmann

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O que você "pode" ler?


Tempo. Faz mesmo um tempo que não escrevo aqui. Aqui? É. Você entendeu.

Bom, não sei exatamente o que isto quer dizer, mas há épocas em que escrevo com mais facilidade, no entanto, em outras, as palavras saem um pouco relutantes, não querem sair assim "desavergonhadas" e sem saber exatamente pra onde estão indo. Hoje quero falar pouco, nada além disso. Prometo não ficar com reflexões e tentativas de entender coisas que nem sempre precisam assumir algum lugar. Apenas escrevo. Necessidade de colocar toda essa "desverbalização" no "papel", mesmo que, esse/a apenas siga o fluxo natural das inutilidades que habitam o espaço textual e imagético que nos circunda. E o mais interessante, é saber que o ser lido é algo imenso, algo que proporciona inúmeras possibilidades: cada um lerá aqui ou em qualquer lugar, aquilo lhe significar. O que torna o texto, a palavra em uma vida, não há regras específicas e pré-determinadas, tudo depende de quanto você traz para que isto ou aquilo faça sentido. É incrível. Tecnicamente surpreendente. Cognição. Essa é a palavra.

sábado, 26 de junho de 2010

Invictus

Enquanto tudo acontece, enquanto a copa do mundo torna-se o evento do momento, nem tudo se vê, nem tudo se fala e pouco se pensa. Notícias, belezas, cultura e a mesma ladainha de sempre em textos sentimentais. Filmes que contam o que aquele povo viveu, documentários em museus e alegria colorida de uma nação... No entanto, nada disso será suficiente quando a copa acabar e o mundo passar a pensar em algum outro evento de alguma outra importância social ou cultural. Tudo bem, é esporte. Mas é quase insuportável ler e ouvir o que se escreve sobre esse "momento histórico". Os discursos de poder e manipulação tentam nos levar para algum lugar comum, tentam nos entreter, mas é preciso pensar, conhecer, ir em busca de outras vozes que com certeza não estão sendo ouvidas.
Enfim, tendo em vista que se fala todo tempo da Copa+África+Cultura, encontrei um poema lido por Mandela enquanto esteve durante 27 anos na prisão e que imagino, nem todos saibam, dá nome ao filme do momento: "invictus",sobre a copa de rugby na África e sobre como Mandela consegue utilizar o esporte para amenizar um sentimento de separação e repulsa. Há diversas críticas ao filme, mas não é esse o meu ponto principal no momento; quero antes pensar nesse "invencível" e em como importa saber o que se está fazendo e por que se está fazendo.Algo mais a pensar.

Invictus

De dentro da noite que me cobre,
Negra como a cova, de ponta a ponta,
Eu agradeço a quaisquer deuses que sejam,
Pela minha alma inconquistável.

Na cruel garra da situação,
Não estremeci, nem gritei em voz alta.
Sob a pancada do acaso,
Minha cabeça está ensanguentada, mas não curvada.

Além deste lugar de ira e lágrimas
Avulta-se apenas o Horror das sombras.
E apesar da ameaça dos anos,
Encontra-me, e me encontrará destemido.

Não importa quão estreito o portal,
Quão carregada de punições a lista,
Sou o mestre do meu destino:
Sou o capitão da minha alma.

O poema foi escrito em 1875 por Willian Ernest Henley.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Dizer.


Quando você decide dizer algo, nada mais será igual. Você decidiu dizer e precisa assumir as consequências que poderão vir junto com essa decisão. Não é fácil ir contra o que já está feito, não é simples lutar contra um sistema que é organizado sutilmente e no silêncio da ignorância e do descaso. Dizer alguma coisa ou fazer algo que mexa com as estruturas, exige esforço, exige trabalho e pensar em algumas situações, talvez em muitas, chega a doer. Muitos exemplos tenho presenciado de palavras que podem mudar e de atitudes que não se cansam de injuriar os sistemas. Contudo, o que parece, às vezes, é que falta direção, falta objetivo claro para que as coisas aconteçam de forma diferente. As pessoas precisam sair da zona de conforto, dizer as coisas sabendo o que estão dizendo e entendendo que nada mais será igual caso você saiba do que está falando ou o que está fazendo. Falta sentido. Falta pensar sobre o "dizer". Falta assumir. E muito me incomoda o que tenho visto por aí: uma cretinice sem tamanho, uma preguiça de pensar, uma aceitação e uma serenidade com a brutalidade, uma indiferença que ecoa dia após dia na "inutilidade" de saber o que dizer, na falta de percepção de que o outro só existe em contraste com o "eu". O que será que estão querendo dizer essas atitudes apáticas? Por que não é preciso mais saber dizer?

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ficam as palavras.


Sexta-feira, 18 de junho de 2010. Um dia chuvoso, nada anormal nisso, afinal estamos quase no inverno. As atividades seguem, o mundo continua seu ritmo de sempre. No entanto, um "new tweet" mudou esse dia normal: "celinaluiza A literatura fica mais pobre... morreu, hoje, aos 87 anos, Jose Saramago...grande escritor português... #sadness" O que dizer depois dessas palavras que quando juntas constroem um sentido que não é fácil de se aceitar?
A vida e as palavras deste escritor foram diferentes: seu estilo violador de regras e sua postura crítica , as polêmicas em torno de suas (re)construções literárias, a ruptura e os questionamentos acerca de uma História com "aga" maiúsculo, a remontagem das visões dos fragmentos de mundo e de saberes, a exposição e o confrontamento do sujeito-leitor com textos que contestem a "Verdade".
É difícil saber que perdemos alguém como Saramago, mas as palavras ficam e afinal é o que podemos deixar registrado: palavras, palavras-pensadas-pensantes-pensáveis.

“aqui, onde o mar se acabou e a terra espera” (Trecho final de o Ano da Morte de Ricardo Reis.)
Trecho de texto postado no blog de Saramago:
“Falei de cultura. Porventura serei mais claro se falar de revolução cultural, embora saibamos que se trata de uma expressão desgastada, muitas vezes perdida em projectos que a desnaturaram, consumida em contradições, extraviada em aventuras que acabaram por servir interesses que lhe eram radicalmente contrários. No entanto, essas agitações nem sempre foram vãs. Abriram-se espaços, alargaram-se horizontes, ainda que me pareça que já é mais do que tempo de compreender e proclamar que a única revolução realmente digna de tal nome seria a revolução da paz, aquela que transformaria o homem treinado para a guerra em homem educado para a paz porque pela paz haveria sido educado. Essa, sim, seria a grande revolução mental, e portanto cultural, da Humanidade. Esse seria, finalmente, o tão falado homem novo.” (postado em 07/05/09.)
http://caderno.josesaramago.org/category/o-caderno-de-saramago/page/2/

"Todo construir começa com o dançar de idéias" F. Nietzsche


"Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é so um dia mais." Saramago

terça-feira, 15 de junho de 2010

Poesia musicada



Nada melhor que uma boa música e um bom livro. Cada um de nós acredita em algo que nos move. Eu teimo em pensar que a poesia aliada à música pode muito.

domingo, 13 de junho de 2010

.Isto.Isso.Aquilo.


"Escrevo rangendo os dentes" O que deveria estar pensando Álvaro- Pessoa- Campos ao escrever sobre um escrever "rangedor de dentes"? O poeta do fazer, do fragmento, escreve, instiga, conta mais do que poderia e menos do que gostaria. É o próprio fingidor em sua essência que faz pensar e sentir e que nesse pensar causa um impacto na vida de quem o lê, não podendo este voltar atrás nas mudanças trazidas pelo "caleidoscópio em movimento" como ele mesmo se designava e, logo, sua poesia. Uma alma barroca que se veste de outras várias e que representa tão bem o tempo que vivemos: um tempo sem tempo e sem lugar, um tempo sem memória, perdido e encontrado, uma colisão de pedaços de almas e de saberes não bem compreendidos ou compreensíveis.
Leio porque preciso, leio porque me alimenta e porque o não saber é cada vez mais sufocante, quando se percebe que nada se sabe. É a infinitude da Biblioteca de Babel de que falava Borges e que em vão tentamos enfrentar e que nos leva ao caos interno, nos leva à eterna busca pelo que pensamos poder saber.
"Tenho febre e escrevo" Poeta fingidor. Poeta do sentir.

Isto
Fernando Pessoa
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Um pouco de Fernando Pessoa vestido de Álvaro de Campos


Álvaro de Campos
Lisbon Revisited
(l923)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

terça-feira, 1 de junho de 2010

Do que a gente sente e pensa


Música e poesia.
Não há quem viva sem. Algumas pessoas podem não perceber, mas vivemos em um mundo que respira poesia e inspira melodias. Nem todas boas, nem todas ruins e isso depende do espaço e do lugar que cada um ocupa (temporariamente, não se esqueça).
Sempre que posso, ouço uma música e tenho meus rituais da poesia. Acredito realmente que isso torna o meu dia melhor e que, é como uma purificação de todas as coisas complexas pelas quais passamos. Coloco meu fone de ouvido, pego meu livro de poesias e é como se eu pudesse ser melhor.
Claro que cada um vê as coisas do que lugar que puder ou que quiser ver, no entanto, mudar, revirar o nosso redor, talvez seja uma experiência que valha a pena. Não quero dizer que saiba exatamente o que estou fazendo. Só sei que "me faz feliz".

Do entre-lugar: Parte "outra"

Do entre-lugar: Parte 1: A poesia

POESIA: “words set to music”(Dante
via Pound), “uma viagem ao
desconhecido” (Maiakóvski), “cernes
e medulas” (Ezra Pound), “a fala do
infalável” (Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade” (Jakobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido” (Paul Valery), “fundação do
ser mediante a palavra” (Heidegger),
“a religião original da humanidade”
(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranqüilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com idéias” (Mallarmé),
“música que se faz com idéias”
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras” (Fernando
Pessoa), “criticismo of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de
linguagem” (Décio Pignatari), “lo
impossible hecho possible” (Garcia
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução (Robert Frost), “a liberdade
da minha linguagem” (Paulo
Leminski)…

Ninguém melhor que Leminski para explicar através da Linguagem o pensamento que se tem sobre a própria Língua(gem).

segunda-feira, 3 de maio de 2010

E o que será?


Hoje está passando, amanhã temos que ser mais.
Não há remédios milagrosos para curar incertezas, não há chaves que abram a porta mágica para o mundo escondido que nos faz parar de crescer. Então, abra os olhos, veja o que o pode ser feito, enxergue que o tempo é esse, é esse mesmo que passa enquanto você lê, enquanto você pensa no que foi, no que poderia ser, no que será. Nem tudo é tão fácil, nem tudo está tão distante. Então, abra os olhos, enxergue. Não julque desnecessária a leitura de um livro novo, pense no acaso com menos preconceito, entenda que você é constituído a partir do convívio com o outro. Escreva se sentir que te faz melhor, ocupe um lugar no mundo, mas não se atenha a isto.
Amanhã, eu não sei, mas hoje leio, escrevo, penso no hoje, penso no amanhã, penso o que será que há de certo com a gente? E o que será que há de não tão certo?
Quem sabe o que será? Quem sabe o que deveria ser? Saber deve ser "legal"!

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Voltando aos poucos...
Pra ter início esse ano de tantas mudanças, uma dose de Rubem Alves:

Sobre as Memórias

Rubem Alves

Memória é onde se guardam as coisas do passado.
Há dois tipos de memória: memórias sem vida própria e memórias com vida própria.
As memórias sem vida própria são inertes. Não têm vontade. Sua existência é semelhante à das ferramentas guardadas numa caixa. Não se mexem. Ficam imóveis nos seus lugares, à espera. À espera de quê? À espera de que as chamemos. Ao chegar a um hotel a recepcionista nos entrega uma ficha para ser preenchida. Lá estão os espaços em branco onde deverei escrever meu nome, endereço, número da carteira de identidade, do CPF, número do telefone, e-mail. Abro a minha caixa de memórias sem vida própria e encontro as informações pedidas. Se desejo ir do meu apartamento à casa de um amigo eu pergunto: que ruas tomar para chegar lá? Abro a caixa de ferramentas e lá encontro um mapa do itinerário que devo seguir. É da caixa das memórias sem vida própria que se valem os alunos para responder às questões propostas pelo professor numa prova. Se a memória não estiver lá ele receberá uma nota má...
São essas as memórias que os neurologistas testam para ver se uma pessoa está sofrendo do mal de Alzheimer. O médico, como quem não quer nada, vai discretamente fazendo perguntas sobre a cidade onde se nasceu, o nome dos pais, onde moram os filhos. Se a pessoa não souber responder é porque sua caixa de memórias está vazia. Essas memórias são muito importantes. Sem elas não poderíamos nos virar na vida. Estaríamos sempre perdidos.
As memórias com vida própria, ao contrário, não ficam quietas dentro de uma caixa. São como pássaros em vôo. Vão para onde querem. E podemos chamá-las que elas não vêm. Só vêm quando querem. Moram em nós, mas não nos pertencem. O seu aparecimento é sempre uma surpresa. É que nem suspeitávamos que estivessem vivas! A gente vai calmamente andando pela rua e, de repente, um cheiro de pão. E nos lembramos da mãe assando pães na cozinha... Viajando, olhando a paisagem com pensamento perdido, vemos um rio. E a alma começa a recitar“O Tejo é mais belo que o rio da minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio da minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio da minha aldeia.” E nos lembramos então do riachinho em que brincávamos quando crianças.
Uma leitora enviou-me um e-mail em inglês. Desculpou-se. É egípcia. Vive no Brasil, entende bem o português, mas tem dificuldades em se expressar. Disse-me que gostava das coisas que escrevo. Escreveu-me para dizer que uma palavra, uma única palavra que eu havia escrito a apunhalara. Numa crônica que eu escrevera para minhas netas, contando como era a vida na roça, disse que não havia eletricidade. Portanto não havia geladeiras. As comidas eram guardadas num armário de tela chamado “guarda-comida”. Essa foi a palavra que a apunhalou. Como é que uma palavra tão banal pode apunhalar? Não foi a palavra. Foi a lembrança. Ela já havia se esquecido de que essa palavra existia. Aí, quando ela a leu, um passado longínquo retornou. Ela se viu menina na cozinha de sua casa no Cairo. Lá havia um guarda-comida...
“Alma” é o nome do lugar onde se encontram esses pedaços perdidos de nós mesmos. São partes do nosso corpo como as pernas, os braços, o coração. Circulam em nosso sangue, estão misturadas com os nossos músculos. Quando elas aparecem o corpo se comove, ri, chora...
Para que servem elas? Para nada. Não são ferramentas. Não podem ser usadas. São inúteis. Elas aparecem por causa da saudade. A alma é movida à saudade. A alma não tem o menor interesse no futuro. A saudade é uma coisa que fica andando pelo tempo passado à procura dos pedaços de nós mesmos que se perderam.
Minha amiga querida Maria Antônia de Oliveira escreveu:
“A vida se retrata no tempo formando um vitral, de desenho sempre incompleto, de cores variadas, brilhantes, quando passa o sol. Pedradas ao acaso acontece de partir pedaços ficando buracos, irreversíveis. Os cacos se perdem por aí. Às vezes eu encontro cacos de vida que foram meus, que foram vivos. Examino-os atentamente tentando lembrar de que resto faziam parte. Já achei caco pequeno e amarelinho que ressuscitou de mentira, um velho amigo. Achei outro pontudo e azul, que trouxe em nuvens um beijo antigo. Houve um caco vermelho que muito me fez chorar, sem que eu lembrasse de onde me pertencera." (Ceriguela, p.14)
É com esses cacos de memória, pedaços de nós mesmos, que se escrevem romances, estórias infantis, poesia, lendas, mitos religiosos, utopias. Nietzsche dizia que só amava os livros escritos com essas memórias, escritos com sangue. E Guimarães Rosa dizia a seus leitores que, para se ser escritor é preciso conhecer a alquimia do sangue do coração humano. Ler um livro escrito com sangue é participar de um ritual antropofágico. É uma celebração eucarística.
Quando eu contava uma estória para minha filha pequena ela me perguntava: “Papai, essa estória aconteceu mesmo?” Traduzindo em linguagem de adulto: essas memórias são memórias de coisas que aconteceram ou são invenções? Eu ficava quieto, sem saber o que dizer. A explicação seria: “Não aconteceu nunca para que aconteça sempre...” O corpo se alimenta do que não existe. Temos saudade do que nunca aconteceu.
É muito fácil contar o passado usando as memórias sem vida própria. É só coletar os fatos e organizá-los numa ordem temporal e espacial. É assim que se escreve a “história”.
Mas é muito difícil contar as memórias com vida própria. Mia Couto, escritor angolano, sabe disso. Eis o que escreveu: “O que Dona Luarmina me solicita são exactas memórias. E isso é o que eu menos quero. Não é que me faltem lembranças. Estão é espalhadas em toda a minha substância. Meu corpo foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses bosques sagrados onde enterramos nossos mortos.”
As coisas se complicam quando é um velho contando estórias da sua infância. A saudade mistura tudo. A saudade não conhece o tempo. Não sabe o que é antes e nem depois. Tudo é presente. “A lembrança pura não tem data. Tem uma estação. Que sol ou que vento fazia nesse dia memorável? O devaneio não conta histórias...” ( Bachelard )
Aí vem a confusão. O escritor duvida de suas lembranças e pergunta como a Adélia Prado: “Houve esta vida ou inventei?” Se a Adélia dirigisse a mim a sua pergunta acerca das coisas que eu conto eu responderia. “Se essa vida não houve, quando a escrevo fica havendo...

(Correio Popular, 28/08/2005)