quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Clarice em Clarices


Clarice escreve de si e de todos com uma simplicidade que vai além das palavras, levando-nos a lugares tão íntimos e comuns; comuns, não apenas no sentido de corriqueiro ou cotidiano, mas antes, em um sentido de “em comum”. Em cartas, crônicas, romances ou contos, sob nome Clarice ou outros, ela sempre escreve de dentro e para fora. No conto “O ovo e a galinha”, Clarice Lispector compartilha uma das situações que atravessaram sua vida: “O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro.” Em outro trecho, “nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu.”
Clarice compõe minuciosamente, invade espaços que ora parecem triviais, mas que quando vistos de perto, tornam-se pedaços de almas e de lembranças guardadas em um lugar qualquer. E ela o faz com uma inteligência atenta e bem posta, com a intimidade de quem partilha de um mundo que é seu, delineando fragilidades, angústias, memórias, desejos, brilhos e opacidades de vidas que ela habita.
A sutileza de uma Clarice feminina que necessita de uma atenção audaciosa e atraente para construção dos sentidos: “os fios de água escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.” A delicadeza com que a autora do “intimismo” e da singularidade descreve a cena em que Mocinha de “O grande passeio” se refresca antes da ruptura definitiva de uma trajetória contada de maneira florida, sutil, mas sofrida. Já na passagem de “Restos do Carnaval”, Clarice narra o encanto da descoberta de um novo olhar que a menina-moça passa a compartilhar consigo mesma: “ E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era,sim, uma rosa.”Há, em Clarice, a graça de alguns elementos cotidianos e bem marcantes que sempre retornam em vários de seus “falares”; a rosa, aparece como uma espécie de divindade, retratada de forma delicada e graciosa, sem perder a intensidade: “Coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana de pétalas grossas e aveludadas com vários entretons de rosa-chá. No centro dela, a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.” E em uma passagem anterior, ela afirma: “Eu, em pequena, roubava rosas.” Ainda em outro momento Clarice destaca: “Fiquei boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher ainda não era.”
A leitura que se abre diante de nossos olhos ao encontrar as falas bem ditas e bem torneadas da autora que, não fixou identidades únicas, que buscou mais do que dizer, através de sentidos e segredos íntimos que saíram do particular para um mundo fragmentado e tantas vezes (re)contado, é uma leitura de viagem, de retorno e de encontros e desencontros: “Eu que sabia que também se morre em criança sem ninguém perceber.” Ou “Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios. Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou o quê? Um quase tudo.” Há nisso tudo clarices e ainda mais.

"Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando” Clarice Lispector