quinta-feira, 25 de abril de 2013

Indecorosamente

Das certezas que Dora tem e tinha e dos confrontos relutantes gestados entre certezas e as contradições inerentes a elas, apenas uma parecia permanecer intocável.
A primeira vez que Dora provara o sabor de uma nota que tocava o fundo do olho da garganta, ela soubera que poderia encontrar aquele sentido onde quer que estivesse.
Sem repetições frouxas ou decorativos dizeres, só ela e as memórias de um tempo concorrente, co-ocorrente.
Tantas certezas abandonadas na beira da estrada e tantas ausências cantaroladas na expectativa de uma atenuância silenciosa.
Falta do que fazer, falta do que pensar, falta do que comer.
A certeza de um naco de cada um dos que estão e dos que são.
E, ali, intocável, uma porção de caquinhos brilhantes em formas de sons, materializando a experiência do que não se pode dizer e que ao ser tocado se esvai, se esfarela no tempo feito palavras que impetuosamente insistem em dar corpo às auroras, aos parélios, aos penitentes e aos catatumbos.
A certeza era dessas que não se pode sentir, dessas que abstraídas do seu espectro perdem a opacidade que faz a graça.

https://www.youtube.com/watch?v=eAA3KF-VBac

terça-feira, 9 de abril de 2013

Dos calares.


Parecia que olhava de dentro dos olhos do mundo.
Cheia de fome de tudo
mas invadida pelo peso de um receio intermitente.
Com a voz quase muda, num sussurro, deseja 'bons dias' e 'tardes'
Quase inaudível, seguia cabisbaixa. com medo de desaparecer antes que chegasse ao final do corredor.
Entrava nas salas com o olho inundado pelo desejo, mas com a voz engasgada pelos silêncios.
Uma disputa sem tréguas.
Diziam: "entra muda e sai calada, qual será a dessa minúscula representante de seres humanos?"
Sentada no fundo da sala de aguardos, via-se de cima, reconduzindo seus compassos.
Temerosa escrevia os pensamentos e rasgava-os. Ela ateava fogo nas mais insanas ideias.
Flutuava pelos espaços buscando um pedaço de amontoados de sensações.
Esquecia-se do tempo em que prometera recomeçar do outro lado do disco. Lados de A a Z.
E usava as potencialidades da narrativa para expiar seus surdos silêncios saturados de calares.
Não sabia dizer com ditos, preferia os zunidos.
Imagem de Venícios Cassiano: Em Teotihuacan

quinta-feira, 4 de abril de 2013

'

Do lado de fora um estalido doce e sonoro de gotas que afogam as mágoas das calçadas
Do lado de dentro as lembranças 
A saudade de quem fica parece árdua,
mais árdua do que a saudade de quem foi, de quem vai.
São compromissos distintos, são contratos de lembranças que se misturam ao por-vir e que pouco a pouco viram outros momentos, outros espaços.
Da perspectiva de quem vai, a ideia de quem fica é que a memória se esvai pelo mundo que se achega
O olhar, entretanto, se anuveia de cá, se anuveia de lá e ao contrário do que parece a medida da lembrança se faz distintamente, não se metrifica em verso, não se compõe em prosa.
Do lado de dentro
o estalido continua,
leve, metamorfoseando as idas, 
materializando as vindas.